Na Jorge Tibiriçá havia uma parede de alvenaria, três pastores alemães, salada de fruta bem miudinha, vô, vó e uma bisa portuguesa com certeza. Era lá que eu assistia a Castelo Rá-Tim-Bum de cabelo molhado, comendo macarrão. A casa era minúscula, um sobrado bem estreito com uma escada caracol — mesmo assim, cabia um menino invisível no box do banheiro, uma máquina de costura, um compressor de aerógrafo e uma caixa cheia de medo de ET na prateleira mais alta do guarda-roupa, entre os bonecos dos Power Rangers, os gibis da Turma da Mônica e o Playmobil de hospital.
Na José Ademar Etter tinha cheiro de cigarro impregnado no colchão. A reforma levou os tacos e o encanamento de ferro, o bidê cor-de-rosa e a porta de vidro corrugado que era gostoso de passar a mão, mas o cheiro de cigarro ficou. O vô revestiu a eira com pastilhas amarelas bem clarinhas, e no fundo do quintal existia um poço secreto cheio de medo de não passar no vestibular — além da cova para enterrar os fracassos sociais, a sensação de que era nova demais para saber o que fazer da vida e o sonho de ser bonita e viver de escrever. O pé de hibisco e o de acerola eram um amor, mas eu odiava o contorno do corpo do vô desenhado a giz no chão. O cheiro de cigarro ficou.
O mais legal da Nordre Fasanvej era o chão aquecido do banheiro. A sacada prestou por dois meses, até começar a nevar. O espaço era minúsculo — cama, mesa, banho, aquecedor e frigobar. Sei lá como, porém, dei meu jeitinho muito brasileiro de enfiar lá dentro várias ficções científicas em edição de bolso compradas no sebo do sujeito que parecia o papai noel, cinco toneladas de vergonha de falar inglês aprendido à base da ansiedade de ler mais rápido e um contêiner inteiro de saudades do meu país.
Da Alexandre Cazelatto eu lembro de poucas, mas boas — o gambá na piscina (ele sobreviveu), os projetos finais (eu quase morri), os livros mofados (nem todos aguentaram), o primeiro pé na bunda, com motivos escusos & espirituais (continuo aqui), a picada de cobra (ela foi dessa pra uma melhor, mas o cachorro ficou). De um lado, uma vizinha boleira. Do outro, um policial. Em frente, a sensação horrível de “Quer dizer que a vida é só isso, então?”.
Na Pedro Mendes Sobrinho (João Caio Silva quando tudo ainda era mato), o andar de baixo inteiro costumava ter uma atmosfera de “Enfim, casa!” com cheirinho de bolo de cenoura. Agora, a gente periga tropeçar nos brinquedos do menininho, e a sensação de conforto das luzes amareladas só aumentou. No andar de cima, com quase todo o espaço ocupado pelo relacionamento à distância começado na pandemia e a biblioteca com exemplares de dezenas de traduções, eu não sabia onde enfiar a sensação de pertencer sem pertencer, de ter chegado lá sem ter saído do lugar — de nunca querer ir embora, mas não poder mais ficar.
Não sei como a Carolina Santos ainda está de pé depois da passagem do furacão — mas felizmente ela está, com as paredes esfarelentas e os ganchinhos pra canecas, as plantinhas na janela e as maritacas e os micos. Tem um espelho onde me olho e não sinto tanta vontade de mudar quem sou. Tem uma cama onde cabe muito mais do que só eu e meus desejos. Tem um ar-condicionado recém-instalado para sobreviver ao calor do verão do Rio e das ideias na cabeça. Tem meu crochê, meus livros, minha montanha, meus sonhos, os encantos e encantados do subúrbio e uma liberdade maior do que a Baía de Guanabara.
Nem tudo são flores: além da infestação de formiguinhas minúsculas, daquelas que mal dá pra ver, todo dia eu encontro uma mania antiga refugiada embaixo do sofá, o pigarro insistente à espreita dentro do travesseiro, um medo sem fundamento me olhando fixamente do fundo do frasco do remédio. Mas aqui as portas não batem, então a gente deixa a sacada aberta pra brisa que vem lá do mar — mesmo que a um ponto cardeal de distância — incensar tudo que há de ruim.
Depois da última mudança — de estado, de carreira, de quase-estado civil — percebi que o menino invisível no box do banheiro não pertencia à Jorge Tibiriçá. O sonho de viver de escrita veio comigo da José Ademar Etter. As saudades foram mudando de endereço, de tamanho, de natureza — às vezes junto comigo e às vezes com os meus amores. A sensação de “Enfim, casa!” eu achei que ficaria na Pedro, mas metade dela se enfiou na mala, desembarcou em terras cariocas e se recusa a sair. As manias, como eu já disse, parece que me seguem por aí. Com tanta mudança, com tanta tranqueira pra carregar por aí, descobri que dá mais trabalho organizar a cabecinha do que mil caixas de papelão.
E essa é minha resolução para 2025 e para todos os anos que vierem depois: agora que meus pés parecem estar criando raízes, é hora de botar ordem no sótão. É hora de separar o joio do trigo, manter as coisas boas, dar um fim no que atrapalha, e enfim ser meu próprio lar.
Uma caipira no subúrbio carioca. Uma cabeça no sendeiro criativo. “mudei • de • ideia” é o espaço da Jana Bianchi no Fantástico Guia para compartilhar as desventuras dessa eterna mudança.
Em trechos consegui ver exatamente o que você escrevia, gostoso de ler, dá pra fazer essa viagem juntinho com você! Parabéns!!!
Gostei demais! Estou pensando aqui na Osório Alves... Ah, longas histórias por lá também.